segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Ao Zénite do Poema



Com o passar do tempo
Afoga-se-me a voz
Eu sei
Num mar de silêncio
E a palavra em cio
Perde o pio
Quando vê
O estridente sentimento
Arrastado pelo vento
Ir cair
Num deserto 
De ocos ecos
Onde as raízes ressequidas
Dos meus versos
Já não têm a força
De esticar o caule
E erguer a flor 
Ao zénite do poema

Porém,
Não temo o silêncio
Nem seu mudo reinado
Pois, por detrás
Dos meus lábios apertados
Se espreito
(Quando o escuro bate)
Bem no fundo
Do meu peito
Vejo estrelas a cintilar
E se eu me calar,
Ouvi-las-ei suspirar
Mil cantos rubros
Que eu ainda te hei de contar, meu amor!

(Carmen Cupido)


 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Quero dizer-te, Amor

 


Quero dizer-te, Amor
Que aqui, no meu peito
És uma raíz profunda
Uma árvore majestosa
Que se ergue, ereta e digna
Ao assalto do que sinto
Do ar que respiro e também do que sou
Em todas as coisas que faço e sonho

Tua presença, imponente
Me agita vertiginosamente
E me embarca inteira
Nos teus ramos vigorosos
Num abraço apertado e fogoso
E d'entre as tuas folhagens dançantes
Vejo estrelas cintilantes
A desmaiar, incessantes
No fundo dos meus olhos

Às vezes,
Acordo de alma húmida
Na alva do que poderia ter sido
E o meu coração chora
Águas errantes que correm
Sabe-se lá para onde
Sob a lua fosforecente
Que triste e condescendente
Do alto da sua distância zenital
Me escruta.

Quero dizer-te, Amor
Que aqui, no meu peito
És um horizonte oculto
Onde os dias perseguem os traços do teu rosto
E onde me revejo, por vezes,
A enganar a saudade
Fingindo beijar teus lábios róseos
E sabes?? Quase, quase, lhes sinto o gosto

Quero dizer-te, Amor
Que aqui, no meu peito
A sede de ti parece não ter jeito
E esta absoluta sofreguidão que sinto
No céu da minha boca
É uma aridez atroz que me arranha a garganta
E me empurra para uma noite perpétua
Onde o vento uiva o agre lamento
Que eu tanto amordaço cá dentro...

Quero dizer-te, Amor!

(Carmen Cupido)


terça-feira, 29 de setembro de 2020

Recomeço


Inspiro e inspira-me
O outono grávido de remanso
A dar à vida o seu cíclico descanso

Lá no alto, as Andorinhas
Já na sua dança de Adeus
No palco dos céus
Sentem que chegou a hora
De baixar as cortinas às tardes
Longas e quentes
E o verão vai-se então
Por caminhos vestidos de veludos coloridos
E as árvores, ai Deus, as árvores
São agora um Mar
Um motim de cores
Ao assalto dos meus olhos

Este novo dia traz entre dedos
As inclementes aragens
De um vento carregado
Que nos arrasta, bravio
Até as portas do frio
Onde a noite se agasalha
Estendendo as mãos e a alma
Ao calor da fornalha

Porém, a esperança
De flores, de verdes e de quentura
Adormece serena na certeza pura
Que depois do inverno
Vem um Sempiterno
Recomeço.

(Carmen Cupido)


 

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Dias Felizes


Num pedaço de campo
Fonte de felicidade
No meio da cidade
Nasci eu
Numa tela composta
Onde os verdes de verão
E os dourados de outono
Adornavam a linha de casas
Pelo tempo, desbotadas
Plenas, no entanto
Com o riso sonoro das crianças
A brincar descalças ou a nadar
Na faixa prateada
Arroio de água clara
Que atravessava de par em par
Tal lasca de céu…
E eu, ó doce recordação
Que me alenta o coração
Menina me vejo
No cimo de uma árvore frondosa
Onde candidamente me pendurava
E em deslumbre me deleitava
A ver passar os dias felizes
Até que a flama fogosa
Do pôr do sol
Me chamasse 
Para casa!

(Carmen Cupido)

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Raios Mil


Quem sou?
O que faço aqui?
Por que caminhos me perdi
E se perdeu o ventre que me pariu

Foi naquele intérmino dia
Abominoso e escuro
Que trovoou
Sobre esta árvore
Tão verde e tão tenra
Que me sou
Raios mil pontiagudos
Que me racharam ao meio
E o céu, sedento de almas,
Se abriu de par em par
E me a levou

Gritei estridentemente
Do alto da minha boca muda
Ao vê-la, ali, deitada
Num leito de tábuas estreitas
A ser pela terra engolida
E a chuva caía, mansa e fria
A lavar-me os olhos
Das estrelas implodidas
Que me jorravam do fundo do ser

Vi-me,
Por Deus, despojada
Da minha fonte placentária
Impiedosamente arrancada
À minha mais profunda
Raiz e razão
De luz e de vida…

E desde então
Condoo-me nesta voragem
De dor e incompreensão
E não encontro em mim
A humildade da aceitação
Nem o perdão
Nem a outra face
Do bom cristão.

(Carmen Cupido)

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Coração de Leão



Há sempre
Uma força tranquila
No coração do Leão
Que cada dia
Brada aos céus
Rugidos feros
Ora de alento
Ora de luta
Ora de advertência
a cavar, ao perigo, a distância
Suas poderosas garras
Sempre prontas a cravar
A carne do mundo
E lamber o sangue ardente
Que brota da ferida
De viver com o peito aberto
Frente à avidez dos abutres
Que se aninham 
Nos ramais mais altos
Dos sentimentos vis
Que tronam nos tórax alheios

Às vezes,
Porém,
Perde o seu vigor
Ou então não o encontra
No mais além de tanta dor
Desesperança tanta
E, nessa exata hora
Parece-lhe sentir-se
Diminuta mariposa
A acoitar-se, rendida
Entre as pétalas
Da mais sedosa
Flor da selva
Que alcança.

(Carmen Cupido)

domingo, 30 de agosto de 2020

A Bênção


Do alto
Da minha descrença
Ergo aos céus
As minhas pálpebras doridas
E assim
Atravesso eu a vida
Sem nunca vislumbrar
As oferendas
Recebidas

Parece-me padecer
De uma lei suprema
Que me deu sofrida
À luz do mundo
Com todas as maldições
Do universo
A recair sobre mim
E sem nunca aprender
A torcer o pescoço
À força implacável
Deste meu Fado

Serei eu
Um fruto esconjurado
Por uma cruenta praga
Que o diabo bafejou
Aos quatro cantos
Do que sou?

Serão
A adversidade
E o sofrimento
A superior natureza
Do ser e da vida
A única maneira
De crescer
Em valor
E em sabedoria?

Rogo
Para que a desfortuna
Que avisto
Efeito ou talvez não
 Da desilusão
Que me rói por dentro
Não encerre
 Meus olhos
De pobre mortal
Na cegueira
De não saber
Ver a bênção
Que recebi
No preciso segundo
Em que nasci…

A VIDA!

(Carmen Cupido)

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Rosa Adormecida



Porquê insistes, amor ausente
Em bater-me no peito
Com o movimento rítmico
Das ondas do mar a quebrar
Nesta praia vazia que me sou

Porquê se te me insinuas
Como a papoila acarminada
Aos olhos de quem passa
Em dança frenética e ondulada
Entre as espigas douradas

Os teus olhos cor de pinheiral
Aferram-se, altivos e acirrados
À minha alma intranquila e nem sequer dobram
Sob o vento que ferozmente sopra

Na minha boca repousa
Um eco estridente da tua voz longínqua
De pássaro emigrado para longe; longe das minhas horas invernais

E deixaste-me assim, rosa adormecida
Nos mais remotos confins do teu jardim
Sob um gélido rocio, esquecida

Orvalho feito de todas as lágrimas que chorei à tua partida.

(Carmen Cupido)

       

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Ao toque da Primavera


É hoje, enfim
Que a alva irrompe
Com o seu canto de galo
Dos dias grisalhos
Que desfalecem na matriz infecunda
Do velho inverno que tombou
E a sua gelidez se estilhaçou
Em mil cores que se verteram
E a correr, divinas, foram
Acordar as papoilas,
O alecrim, as malvas
E todos os outros
Seres silvestres
Nos campos dormentes

Ao toque da Primavera
As pálpebras do mundo
Levantam-se de repente
Para o dia surgente
Que as espera
E o seu novo corpo ciliar
Ornado de esmeraldas
Faz sombra à pupila
Que de tanta beleza e luz se contrai
E a iris, enciumada e receosa
Afana-lhe a cor
À joia preciosa

O sol desponta
Agora possante
E de um só raio rasga as nuvens
Que o retinham
Num limbo borralhento
Ora, logo as safiras
Que trazia no bolso se soltaram
E foram salpicar o céu
Que espanou as cinzas
Ao seu vestido cor de infinito
E o solar espaço que ficou
Foi tomado de assalto
Por anjos, pássaros e borboletas
A inebriar-se em alto voo
Do mel de viver
E a vida a obrar; e a vida a zoar
Na própria colmeia

Vai, Inverno, vai
Vai-te embora
Que o tempo passa e nada se demora
Fecha os olhos só o instante
De dar descanso à tua velha carcaça
Silêncio, nem mais um rumor
Não roubes o tempo
De canto ao rouxinol
Nem o bocejo às flores
Que se espreguiçam 
Na lentidão de se fazer fruto
No alto das cerejeiras
E nem a mim o malmequer
Urge-me desfiar-lhe as pétalas
Para ver se o meu amado bem me quer
Ou bem me quer ou bem me quer

Vai, inverno, vai
Vai-te embora
Porque o tempo passa e nada se demora
Que não se te conceda nem mais um segundo
Pois, lá ao longe, lá ao fundo
Já o Verão se pousa
Nos seus fios dourados!

(Carmen Cupido)

terça-feira, 28 de julho de 2020

O Pássaro, o Fardo e a Promessa


Sob este fardo
Pesado e disforme
Sou um pássaro
Que não pesa mais
Do que as suas penas
Desairosas…

E de que me serve viver
No cume da árvore
Se o céu está à distância
De umas asas enfezadas
Que não sabem
Que não podem
Voar…

Desde esta jaula
Onde me estou
Só a lua
E uma ou outra 
Estrela cadente
Me visitam por vezes
Quando a noite vem
E a incurável ferida
De morrer em vida
Me tem
De mãos (asas)
Atadas…

Prometeste-me que
Voaríamos lado a lado
Mas a tua voz perdeu-se de mim
E o teu rosto foi escorregando
Entre os meus dedos
Carregados de nuvens…

Prometeste-me
todo o inefável
Deste mundo
E deixaste-me cair
No hediondo…

Entre as pedras do caminho
Não há nada que brilhe
Nem rubis nem ametistas
E as promessas são apenas
Ervas daninhas…

E aqui me tens, ó vida
No alto de um ramo
Altiva e digna
À beira de um desdouro
Onde só o silêncio
Me honra!

(Carmen Cupido)

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Asa Partida


Nesta longa espera
Fiz-me sombra do que era
E as vozes no meu coração
Levantam apenas lamentos de antão

É cor de fogo o horizonte
Que tenho por defronte
E a saudade é uma fonte
Onde eu ondeio, vazia, mas plena de ti

É fervente a tua ausência
Deserto esbraseante que dita a iminência
Da morte das flores que me plantaste no peito

A raiz de ti aferra-se-me à alma
E o meu penar não mais se acalma
Mil vezes puxei, mil vezes cavei, fundo, ao seu redor
E quanto mais fundo, mais dor; quanto mais fundo, mais dor

Caminho, pois, com os teus olhos cravados
Nos confins da minha memória
A declamar, sem cessar, a estória
De um amor malnascido, mal erguido por terra tombado

Ainda nem sequer vivi e a noite já aí vem
E nem sei que força me sustém
No beiral da vida, onde me sinto perdida
De asa partida; sem ti a meu lado!

(Carmen Cupido)