terça-feira, 29 de setembro de 2020

Recomeço


Inspiro e inspira-me
O outono grávido de remanso
A dar à vida o seu cíclico descanso

Lá no alto, as Andorinhas
Já na sua dança de Adeus
No palco dos céus
Sentem que chegou a hora
De baixar as cortinas às tardes
Longas e quentes
E o verão vai-se então
Por caminhos vestidos de veludos coloridos
E as árvores, ai Deus, as árvores
São agora um Mar
Um motim de cores
Ao assalto dos meus olhos

Este novo dia traz entre dedos
As inclementes aragens
De um vento carregado
Que nos arrasta, bravio
Até as portas do frio
Onde a noite se agasalha
Estendendo as mãos e a alma
Ao calor da fornalha

Porém, a esperança
De flores, de verdes e de quentura
Adormece serena na certeza pura
Que depois do inverno
Vem um Sempiterno
Recomeço.

(Carmen Cupido)


 

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Dias Felizes


Num pedaço de campo
Fonte de felicidade
No meio da cidade
Nasci eu
Numa tela composta
Onde os verdes de verão
E os dourados de outono
Adornavam a linha de casas
Pelo tempo, desbotadas
Plenas, no entanto
Com o riso sonoro das crianças
A brincar descalças ou a nadar
Na faixa prateada
Arroio de água clara
Que atravessava de par em par
Tal lasca de céu…
E eu, ó doce recordação
Que me alenta o coração
Menina me vejo
No cimo de uma árvore frondosa
Onde candidamente me pendurava
E em deslumbre me deleitava
A ver passar os dias felizes
Até que a flama fogosa
Do pôr do sol
Me chamasse 
Para casa!

(Carmen Cupido)

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Raios Mil


Quem sou?
O que faço aqui?
Por que caminhos me perdi
E se perdeu o ventre que me pariu

Foi naquele intérmino dia
Abominoso e escuro
Que trovoou
Sobre esta árvore
Tão verde e tão tenra
Que me sou
Raios mil pontiagudos
Que me racharam ao meio
E o céu, sedento de almas,
Se abriu de par em par
E me a levou

Gritei estridentemente
Do alto da minha boca muda
Ao vê-la, ali, deitada
Num leito de tábuas estreitas
A ser pela terra engolida
E a chuva caía, mansa e fria
A lavar-me os olhos
Das estrelas implodidas
Que me jorravam do fundo do ser

Vi-me,
Por Deus, despojada
Da minha fonte placentária
Impiedosamente arrancada
À minha mais profunda
Raiz e razão
De luz e de vida…

E desde então
Condoo-me nesta voragem
De dor e incompreensão
E não encontro em mim
A humildade da aceitação
Nem o perdão
Nem a outra face
Do bom cristão.

(Carmen Cupido)

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Coração de Leão



Há sempre
Uma força tranquila
No coração do Leão
Que cada dia
Brada aos céus
Rugidos feros
Ora de alento
Ora de luta
Ora de advertência
a cavar, ao perigo, a distância
Suas poderosas garras
Sempre prontas a cravar
A carne do mundo
E lamber o sangue ardente
Que brota da ferida
De viver com o peito aberto
Frente à avidez dos abutres
Que se aninham 
Nos ramais mais altos
Dos sentimentos vis
Que tronam nos tórax alheios

Às vezes,
Porém,
Perde o seu vigor
Ou então não o encontra
No mais além de tanta dor
Desesperança tanta
E, nessa exata hora
Parece-lhe sentir-se
Diminuta mariposa
A acoitar-se, rendida
Entre as pétalas
Da mais sedosa
Flor da selva
Que alcança.

(Carmen Cupido)