sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Pássaro na Gaiola


A fingir-me poetisa, tentei escrever o silêncio. Quem já o ouviu, diz por aí que o bicho não se deixa apanhar, nem ouvir e muito menos escrever, mas eu não acreditei. Com a primeira pluma que me caiu na mão, lancei o laço ao indomável dragão. Refreei-o bem, rédea apertada, para que não fuja e, sobretudo, não cuspa o fogo para que o corpo do silêncio não se faça cinzas antes mesmo que o som se faça letra deitada no papel. O primeiro gatafunho que sarrabisquei era uma dor que vi sair da boca, mas a dor era amarga e a garganta estreita. Parei logo. Apaguei.

Depois, armei-me de coragem e deixei-me escorregar caminho abaixo. Qual poetisa, meia sem jeito, se detém sem escrever o feito? Com medo ou sem, avancei. Quis continuar a rebuscar, mas o declive era íngreme demais e resvalei mais do que muito além; fui parar onde eu não queria, de traseiro ao chão, à entrada do coração. No coração não quis entrar. Eu tinha a certeza de que aquilo era feito de areias movediças ou, pior, de lava de vulcão. Incinerar-me tão cedo, isso não! Temi lá entrar; confesso, agitava-me o medo de encontrar o amor que lá morava morto, envenenado por tanto desamor que lhe deram a provar. Dessossegou-me o pensamento de lá encontrar os afetos virados do avesso feitos desafetos, as ilusões afogadas em desilusões e os sonhos esvaecidos! Sim, parei e não entrei. Olhei para trás, quis apagar as linhas e contra linhas que acabei de rabiscar, mas o coração era um tal resvaladouro que não consegui escalar. Como voltar atrás não podia, prossegui, mas logo, logo me arrependi. Não é que no meio do peito, havia um horrífico cavernal vazio! Chame-se-lhe brecha, chame-se-lhe fenda, chame-se-lhe escarpada fissura, cair de alto seria morte segura. Olha o suor fino pelo rosto a baixo. Num desarmónico sobressalto, a linha do silêncio quase, quase irrompeu num primeiro tímido rugido, mas mal saído foi logo, logo engolido. Dei meia volta e procurei um outro atalho que me levasse ao segredo do silêncio.

Foi então que, de longe, avistei uma espécie de gruta, uma espécie de túnel e ao fundo, uma luz! Pensei para mim mesma: Eureka, é por aqui o ventre onde o silêncio se faz criança! Mas ai Deus, nem quero contar o que eu lá fui encontrar.

Pois é, aquele ventre era mais um pantanal cujas águas eram compostas por um emaranhado tal de dores passadas, de deceções vividas, de sangue vertido e, não é que, as lágrimas que derramei a vida inteira, e que julgava esquecidas, evaporadas, estavam ali desaguadas. Aqui e acolá, no meio de tamanha miscelânea, lá ia encontrando uma alegria vivida, um momento de graça, um riso, um poema escrito ou um filho parido e ainda bem, respirei de alívio, respirei fundo pois nem tudo o que silêncio contém é infesto! Soube então que, ali, na introspeção e no silêncio que procurava encontrei, afinal, a minha própria vida a querer deslizar de mim como a gota de orvalho cai da rosa ao primeiro raio de sol.

E como reter algo que quer voar de mim? E como voar, se não se tem asas? E foi assim que fui saber de mim no espelho branco da parede da minha sala e, sem grande surpresa, descobri-me Pássaro na gaiola! E se o ditado diz que pássaro na gaiola não canta, lamenta; concluo que sou uma alma feita de chilreios abafados!

Alguém, por favor; alguém que me ensine a liberdade!

(Carmen Cupido)