Carmen Cupido
Um diminuto berço me recolhe onde a palavra se elide na matéria, na metáfora, necessária, e leve, a cada um onde se ecoa e resvala (Luiza Neto Jorge)
domingo, 30 de outubro de 2011
A farpa
(Foto proveniente do Teatro "A Farpa" da Companhia Miníma)
Há sempre uma farpa
Que se elide no ventre do Poeta
Uma espécie de canto lutuoso
Declamando notas álgicas diversas
Um flúmen menstrual de Musa
Esculpindo margens na palavra purpúrea
Caules subterrâneos na escuridão do poema
Bolbos de madrugadas várias a nascer para dentro
Verbos, versos, com um monstro bicípite na ponta
Empurrando as letras em tormentos contrários
Rodopios ardilosos que a conta – gotas
Vão desfolhando as bubas do poema
Sarrabiscos aos Ais com asas de pedra
Que cravados na terra, admiram os céus
De longe, de longe...
(Carmen Cupido)
quarta-feira, 26 de outubro de 2011
De bruços sobre o dia
Ninavam no berço do horror
Todos os silêncios que nos davas a comer
Óvulos violência que fecundavas com o terror
Que, na noite amarrava o sol, para não nascer
Nos cantos da casa, tudo rezava
A Mãe, os filhos, o sal e até o vento
Mas Deus não chegava e nada acelerava
O tempo que se arrastava, de tão lento...
Os gritos eram ecos quebrados
Contra os quatro muros
Mal saídos da boca, eram logo abafados
Nos teus nevoeiros escuros
O amor que não davas
Era pão com bolor
Que engolíamos por temor
Aos regos que cavavas
De cinto em punho
Mas na veia algo havia
Que nos falava, nos dizia
Que amanhã, de bruços sobre o dia
O sol teimoso, nasceria
E nasceu...
Cuspiste tanta ira e de nada te valeu!
(Carmen Cupido)
quarta-feira, 19 de outubro de 2011
Meia Benção, Meia Praga
És …
Meia Benção, meia Praga
Meia Carícia, meia Chaga
Coágulos dos meus gritos
Que berram agudos, aflitos...
Ai, que ensurdeço por dentro!
És...
Meio Ferro, meio Veludo
Meio Nada, meio Tudo
A palavra que me é dita
No silêncio que me habita...
Ai, o terremoto nas minhas entranhas!
És...
Meia Sede, meia Fonte
Meio Abismo, meia Ponte
Um pé na distância
E o outro pisoteando a ânsia...
Ai, a hera que me trepa o coração!
És...
Meio Tarde, meio Cedo
Meio Belo, meio Ledo
A noite que se apressa
Na madrugada cheia de pressa...
Ai, e ainda assim, o sol em mim, não desponta!
És...
Meia Prisão, meio Mar vastidão
Meia Dor, meia vermelha Flor
Às vezes ardente, cálida
Às vezes doente, pálida...
Ai, a raíz bebâda de riso e de lágrimas!
És...
Meia Vida, meia Morte
Meio Azar, meia Sorte
E persegue-me o desespero
Porque por não te querer
Ai, Amor! Tanto te quero!
(Carmen Cupido)
domingo, 9 de outubro de 2011
À proa
(Imagem "Outuno II" de DDIArte olhares.com)
E se o arco
Dos teus braços
Fosse um barco?
A derradeira embarcação
E a virgem, figura à proa, fosse meu coração
Que ao sol levanta, aproa
Seu corpúsculo tal uma canção
De embrandecer as ondas que rasga
Como se fossem de papel
Imagina:
Vai alto, furioso, violento
Filar o vento
Num último intento
De te alcançar; alcançar o astro
Antes que a morte venha
E apague o rastro
Do que eu sou, por dentro
Do que eu sinto, no centro
Será sonho?
Querer, em ti, navegar
Ter os teus olhos por mar
Amar; Amar-te, Amar
Antes do outono, do cair da folha
Antes que a vida finde
E no inverno, meu corpo encolha
E a terra com gula
Me engula!
(Carmen Cupido)
terça-feira, 4 de outubro de 2011
Calar é dom
(Desconheço o autor desta bela imagem mas apelo a quem conheça,
porque cada autor merece ver reconhecido o mérito do seu trabalho!)
Às vezes,
Calar é dom
Arrancar pontualmente o som
Que me ensurdece por dentro
Quando me adentro
À procura de mim e não me encontro
Lá no fundo, só um monstro
Me grita e me devora
Reconhecer enfim a hora
De cortar o alimento
Amordaçar o lamento
Matar o glutão à fome
A besta que de mim tudo come
Até as tripas...
Calar,
Dizer não ao falar por falar
Ao palreado fútil cortar o ar
Com os olhos, rir
Sem mastigar, engolir
O mundo pelos sentidos
Verter meus cantos feridos
Em cada pingo de poesia
Seguir com o dedo a palavra escorregadia
Metade mel, metade fel
Que se me vai, que se me cai
Dos poros da alma para o papel!
(Carmen)
Não sei se fui eu que virei as costas à poesia; ou se foi a poesia que me virou as costas. O que eu sei é que, às vezes, a alma precisa de algo mas não sabe bem do quê! Há, na vida, momentos assim; em que a palavra perde a sua essência mal sai da boca e só nos resta calar e escutar o que o silêncio tem para nos dizer! Neste viver sem som, descobri que saber calar não é castigo mas sim um dom! Aprendi que, por vezes, a sabedoria não está nas palavras mas nos espaços mudos que as separam!
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