terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Multidão


(Multidão de Pedro Charters de Azevedo)

Paro.

Desligo o autómato que trepou
Nos últimos grãos de vontade
Que ousaram germinar entre os rasgões
Da minha alma.

Penso.

Reanimo a Anima
O ser embrionário do Eu
Que se enfezou no ir com a corrente.

Elevo-me.

Mais alto do que a massa uniforme
Abandono o trilho da Maria vai com os outros
Respondo ao apelo urgente de não ser igual
Ser diferente.

Que se incendeie esta mata disforme
Onde corpos sonâmbulos, ocos, deambulam
E renascerei, de entre as cinzas e escombros

ÚNICO!

(Carmen Cupido)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Dama dos Cravos


(Liberdade Foto de Nessuno olhares.com)

Era o teu corpo, gigante ferida
Tua, mulher, nas mãos do horror, sofrida
Que ao fender a veia, ia pintar
Cor de sangue a gritar
Os cravos do teu terraço

E ai Deus!
Como eram belos e aprumados
Mulher, os teus cravos
Generosamente regados
Pelas águas que corriam nos dois valados
Fundos, cavados
Pela dor no teu rosto

E com tal beleza
No peitoril da tua casa
Tapavas com destreza
A fealdade dos dias
Em que a vilania assassinava a tua liberdade
E tu morrias,
Pouco a pouco a pouco

Nada parou a morte
De vir desprender, de um só corte
A corda que mantinha a tua asa presa
E tu partiste, minha dama dos cravos,
Voaste com leveza...

Foste com certeza
Fazer enrubescer o mesmíssimo céu!

(Carmen Cupido)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A luz que eu lhes dou



Cala-se-me o sorriso,
Pouco a pouco, eu sei
Nos lábios dos meus olhos
Que trinco
Para que a boca não chore
Óvulos de lágrimas
Que descem os degraus
Que separam os ovários da poetisa
Do útero que ansia o embrião poema

Vergo,
Um dos meus joelhos já toca terra
Sob o peso que cada dia mais me enterra
Braçado de corpos e vidas que carrego aos ombros

Porque me senti derrear
Com tantos pedaços de outros que trago em cima de mim
Subtraí o meu próprio peso que se fez sombra
Porque sombras não pesam e só se vêem
Quando vem o sol...

Mas já que o sol não vem
(Deserdar os outros de mim não podia!)
Pensei descoser-me do que sou, rebentar-me pelas costuras
E das tripas do amor fazer cordeis de luz

Pendurei os cordeis, juro que nem um guardei
Ao longo da estrada dos que vivem por mim
A vida que eu não vivo; mas os loucos
Nem conta deram que me abandonei lá fora
Para caminhar com eles às costas,
Mas sem ninguém dentro de mim

Cala-se-me o sorriso
Pouco a pouco, eu sei
Nos lábios dos meus olhos...
Doi-me na carne esta dor
De carregar tantas bocas penduradas
Nos mamilos do que me sou
Sugando, sôfregos, toda a luz que eu lhes dou
E eu, deslizando já, sob o véu negro das trevas...

(Carmen Cupido)

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Maria é



(Foto de Maria Flores olhares.com)

Maria é Grande.
Porque guarda dentro do que é,
Todos os tamanhos do ser que já foi.
E a memória do sangue que perdeu,
Das lágrimas que lambeu,
Também!

Maria é Mulher.
Mas quando a tempestade vem,
Faz-se homem forte, de pé
E nem no núcleo do furacão estremece, perde a fé
Porque sua Mãe, mulher também, lhe ensinou
A subir à garupa do vento para lhe puxar as rédeas!

Maria é Corpo.
É carne, sangue, sombra, pecado;
É matéria, escuro, ventre, sagrado
Deusa consagrada, Virgem Mãe imaculada
E prostituta também
Quando o sexo desabafa tempos feridos
Procurando esquecimento nos prazeres consumidos!

Maria é Pilar.
Mas seus muros são feitos de braços quentes
Do seu colo que é lar
Ela é laço de mil pontas que ninguém retém
Ponte para mais além
Mar de amar o amor que sabe de cor
Como silenciar a dor!

Maria é Árvore.
E atravessa as estações
Com as bocas dos filhos aferrados aos seus seios
Que são ramos carregados de fruta do amor, elixir de Mãe
E o seu regaço, tronco de aço, que sustém
O peso do mundo!

Maria é Essência.
Imprimida na alma, traz a ciência
De respirar as coisas simples
E quando se põe a olhar para a vida
É como se fosse Deus a espreitar lá do alto!

(Carmen Cupido)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A lua chora


(Red Moon photo by mnoo)

Falar-te do que sinto
Perdeu o sentido
O silêncio derramou o fluido
Das palavras, seiva sangue escarlate
Punho que bate
À porta do teu ouvido
Quando o meu coração, sem norte
Vai à sorte; Perdido

Tu és
Um grito que vomito
Derradeira laje
Onde jaz
Minha última lágrima
Que em vão corre, porque a correr se morre
Nas mãos da evidência que o ventre não vê

Na orla do abismo
O coração já se me some
Sentado num eco
Que leva o teu nome
Para terras de ninguém
E as flores que em mim plantaste
Levantam a meia haste
Da semente infértil

E eu, assim desflorada
Tremo de nua
Tremo, vazia e calada
E quando o último sopro de ti se me apaga
Até a lua chora e me afaga!

(Carmen Cupido)